domingo, 27 de outubro de 2013

Preconceito linguístico

Desde o fim do século XIX a linguística estuda a língua em seu uso real, considerando variações linguísticas, sejam elas de espaço ou tempo. Por essa razão, a linguística trabalha com a noção de adequado e inadequado em um contexto comunicativo, refutando assim a ideia de “erro”. Em despeito a mais de um século de estudo sobre a ciência da língua, as escolas simplesmente ignoram quase que totalmente os avanços da linguística e ensinam que há somente uma forma correta de falar e escrever, afirmando que apenas quem segue as regras da norma culta fala o idioma corretamente. Tal postura das escolas aliada à mídia (novelas, por exemplo, nas quais personagens nordestinos são geralmente retratadas como pessoas inferiores e utilizadas para provocar risos, e reportagens, manuais e telecursos com a finalidade de “ensinar a falar corretamente”) intensificam um preconceito não tão discutido quanto o racial ou o de gênero, mas nem por isso menos presente, que é o preconceito linguístico.

É necessário apenas alguns cliques para encontrar exemplos desse preconceito em prática, e citaremos dois deles. No artigo de opinião escrito por José Sarney para a Folha de São Paulo em maio de 2011, com o título “Fale errado, está certo”, o autor afirma que há uma tentativa de criminalizar quem fala certo e que a escrita é a linguagem falada em caracteres. Além disso, ironiza ao dizer que voltaremos ao sistema tribal, no qual cada um fala como quer.  No site Viva Itabira temos o artigo “É certo falar errado?” escrito por Ana Maria, que além de utilizar expressões como “ofensivas variações” e “língua descaradamente inculta”, demonstra todo o seu preconceito linguístico no trecho: "Mineiros novos ricos adoram falar ‘ocê’, dá um ar de que enriqueceram, mas continuam sendo gente simples da roça, também perguntam se você ‘tá bão’". Para finalizar o texto utiliza a seguinte frase: “Vocês nem imaginam a dificuldade para escrever este artigo, o computador ainda mantém um mínimo de dignidade e se revolta com ataques frontais à língua portuguesa”.

Nenhum desses dois autores é um especialista da área em questão e provavelmente não conhecem os princípios da linguística. Não há criminalização a quem fala “corretamente”, como diz José Sarney. Aliás, não há o “correto” e “incorreto, e sim “adequado” e “inadequado”, que considera além das escolhas do léxico e sintaxe utilizados, o contexto. Também se sobre o que, como ele mesmo diz, os “novos teóricos da educação” acreditam que deve ser ensinado nas escolas; nenhum linguista afirma que não se deve ensinar as regras da gramática normativa, mas sim que não se deve aceita-la como única possível e rejeitar as demais variações. Erra também ao dizer que a língua escrita é a simples representação da língua falada, sem considerar as características próprias de cada uma. Outro equívoco é dizer que cada um falará como bem entende, pois em qualquer variação há estruturas que não podem ser ignoradas, ou não terão sentido. Por exemplo, posso dizer “os livro tá na mesa”, fugindo à norma culta por utilizar o plural somente no artigo e reduzindo o verbo “está” para “tá”, mas mesmo assim sendo compreendida por outro falante da mesma língua, porém não poderia dizer “tá livro os mesa na”, pois essa estrutura não pertence à nossa língua e não seria passível de compreensão. O mesmo ocorre com palavras, não é possível que um falante crie suas próprias palavras como bem entende, pois não será compreendido por outras pessoas. No texto de Ana Maria o que mais chama a atenção é o fato de a autora pensar que ao ascender socialmente o individuo passa a dominar a norma padrão que não possuíam quando era “gente simples da roça”, porém prefere continuar com sua variação anterior porque acha “chique”. Até o computador dela é mais digno que brasileiros que não utilizam a norma padrão e por isso cometem “ataques frontais à língua portuguesa”.
Nos dois textos podemos identificar claramente que o preconceito linguístico está intimamente ligado ao preconceito social; as classes mais prestigiadas são as que fazem maior uso da norma aceita como única correta, e citando novamente José Sarney, as demais não fazem parte do português, como afirma quando diz "sem regras, ela se torna outra língua, passando por crioulo, dialeto ou outra coisa que se queira chamar."

Mesmo com os avanços da linguística, mitos como “o brasileiro não sabe falar português” continuam a ser espalhados e aceitos em nossa sociedade. A quem interessa manter calados os linguistas e os vários brasileiros oprimidos por “falarem tudo errado”? Por que leigos em línguas continuam a opinar em como deve ser o ensino do idioma materno sem considerar todo o estudo feito por especialistas? Ainda há muita resistência ao estudo da linguística em sala de aulas, embora tenha ocorrido um progresso nesse sentido nos últimos anos ainda não é o suficiente. O preconceito linguístico existe e atua fortemente em nossa sociedade, e assim como os outros, deve ser amplamente discutido e combatido.


Bibliografia:
BAGNO, MARCOS. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. Editora Loyola, 2008.
Revista Galileu: O preconceito linguístico deveria ser crime

Texto por Vanessa Passos
Arte por Jéssica Lima

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