domingo, 27 de outubro de 2013

Linguística para tudo e todos

Já parou para pensar como você é capaz de se comunicar? Em algum momento, já parou para pensar em como você é capaz de pensar? Neste estudo, vislumbraremos uma ciência que, comparada a tantas outras – como matemática, geografia, biologia, é jovem (querendo dizer que ela ainda não é secular), o que não significa que ela seja incompleta: é justamente o oposto. E assim como suas “irmãs” de outras áreas, é essencial para o homem. Seus estudos desenvolvem-se a cada dia, sua complexidade aprofunda-se e, mesmo que você não tenha notado, a Linguística está presente na sua vida desde o seu nascimento. Afinal de contas, o estudo da Linguística é justamente tudo o que você lê e compreende neste momento, o que está escrito neste texto, o que leu para ligar seu computador, o que digitou para chegar até este endereço na internet e muito além – o que comeu, o ônibus que pegou, as roupas que veste, o mundo ao seu redor – tudo isso é a linguagem, nosso objeto de estudo. Para especificar melhor: tudo o que vemos ao nosso redor é representado por palavras – vamos usar um termo mais técnico – os léxicos. Para ser mais claro ainda, vou usar um exemplo mais prático, vou dizer :“porta”. Você imaginou uma porta alta ou baixa; branca, preta, vermelha, colorida; com maçaneta, com olhal, enfim. As variações da nossa “porta” são muitas de pessoa para pessoa, mas o que é importante aqui é saber que ao ouvir “porta” você imediatamente imagina o objeto com esse nome – e só foi capaz de tudo isso por usar a língua.


Para oficializar: Linguística é a ciência que tem por objeto de estudo a linguagem, ou seja, estuda os fenômenos linguísticos e pode ser dividida em vários estudos. Dentre eles:
  • fonética, o estudo dos diferentes sons empregados na linguagem;
  • fonologia, o estudo dos padrões dos sons básicos de uma língua;
  • morfologia, o estudo da estrutura interna das palavras;
  • sintaxe, o estudo de como a linguagem combina palavras para formar frases gramaticais.
  • semântica, podendo ser, por exemplo, formal ou lexical, o estudo dos sentidos das frases e das palavras que a integram;
As divisões da Linguística vão muito além dessas, e neste trabalho vamos abordar alguns tópicos bem interessantes: as Dicotomias de Ferdinand Sausurre (pai da nossa ciência), Arbitrariedade e Linearidade, Variação Linguística e, por fim, Preconceito Linguístico.

Sobre as Dicotomias de Sausurre, veremos as quatro divisões básicas que foram usadas pelo linguista e que, por meio delas, foi capaz de garantir à linguística seu status de ciência. São elas: Langue x Parole; Diacronia x Sincronia; Paradigma x Sintagma e Significante x Significado.

Referente à Arbitrariedade e Linearidade, falaremos dos significados das palavras, do por quê de uma porta chamar-se “porta” e não “paçoca”; ambas são palavras, mas o que atribui os seus respectivos significados?

Para Variação Linguística reservamos um trabalho detalhado sobre as diferenças que podem haver em uma mesma língua. Falando assim parece vago, mas vamos imaginar: um mineiro tem uma variação diferente de um paulista, que fala diferente do pernambucano, que fala diferente do gaúcho e por aí vai... Note que todos eles falam português, com suas devidas variedades, e é isso que abordaremos sobre o tema.

Por último, mas não menos importante, falaremos de Preconceito Linguístico – um dentre tantos outros, e bem antigo, vem antes mesmo da Linguística. Quais as causas, o que acarreta, as diferenças que gera nos falantes de uma mesma língua. Mesmo parecendo abstrato, esse tipo de preconceito é muito recorrente, e não só dos falantes de língua portuguesa.

Agora que você está bem informado, vamos à leitura?

Texto por Jonatahas Souza
Arte por Jéssica Lima

Dicotomias Saussurianas

Antigamente os pesquisadores acreditavam no parentesco entre as línguas. Havia o agrupamento das línguas em famílias de acordo com a afinidade entre elas. Os pesquisadores tinham interesse em saber como as línguas evoluíram, e os estudos eram histórico-comparatistas.

No final do século XIX e início do século XX, começaram a aparecer pesquisadores interessados na língua como um fator social. Nesse momento surgiram uma das primeiras preocupações de Saussure, antes mesmo de começar a postular suas teorias, que foi a organização metodológica dos estudos linguísticos. Até então vários estudiosos travam de coisas diferentes com nomes iguais e vice-versa, ou seja, havia a ausência de uma terminologia adequada, precisa e objetiva, que dificultava-lhes as expressões das ideias e, consequentemente, alongava o caminho que levaria a habitação da linguística como ciência, afinal, como só a é ciência universal é necessário que sua nomenclatura também seja universal.

Na tentativa de racionalizar o estudo linguístico, Saussure, em seu “Curso de Linguística Geral” propõe o seguinte esquema:
  • Linguagem: língua e fala;
  • Língua: sincronia e diacronia;
  • Sincronia: relações paradigmáticas e relações sintagmáticas;
Como se pode ver, a teoria de Saussure se desenvolve não apenas através de divisões, mas a partir do estudo das oposições segundo uma mesma noção dicotômica, como se pode ver também na sua teoria do signo linguístico:
  • Signo = Significante + Significado
  • Princípios de Signo = Arbitrariedade + Linearidade

A primeira dicotomia que vamos apresentar é entre língua e fala.

Para Saussure, a linguagem tem um lado social, a língua (langue) e um lado individual, a fala (parole).

A língua é usada entre os membros de uma comunidade, que seguem um determinado sistema linguístico, e a fala é o registro individual da capacidade de linguagem, é a maneira que cada pessoa adota para se expressar. Ela é coletiva, social e sistemática: quer dizer que ela é um sistema, um conjunto organizado, que se define pelas oposições a outros, produto que o individuo registra passivamente.

Fala é a manifestação ou concretização da língua. É assistemática, ou seja, um ato individual de vontade; ao falar o falante precisa optar por uma ou outra maneira de dizer a mesma coisa ou escolher entre vocábulos. A fala é particular, individual e dependente.

Para Saussure, a fala não deve ser estudada pela linguística, pois é secundária e assistemática.

Sincronia e Diacronia

Sincronia: Estudo da língua em dado momento, ou seja, recorte e análise de um momento específico da língua, não relacionado à sua modificação ao longo da historia, mas as relações no momento do recorte.

Diacronia: É o estudo histórico da língua, como é possível verificar neste exemplo:

Em 1980, chegou ao Brasil o Leite Moça. Ótimo alimento para as crianças. Consumido apenas como bebida podia ser armazenada por muito tempo, ideal para período de escassez de leite. Quando aparecia a lata com a figura da moça, as solicitações eram imediatas, todos queriam a “lata da mocinha”. E assim, veio para ficar. A jovem com traje típico, no rótulo, é homenagem a uma camponesa suíça do século XIX, quando a mulher vivia confinada ao lar, disponibilizando sua criatividade para a confecção de doces. Na época o leite condensado da Suíça tinha a marca “La Latirei” (vendedora de leite) quando exportado, procurou o nome equivalente na língua de cada região. No Brasil por falta de um equivalente em português, denominou-se “Milkmaid”, porém a dificuldade em pronunciar o nome transformou o produto em “esse leite da moça”. Quando a Nestlé iniciou sua produção, em 1921, com a primeira fabrica em Araras,  São Paulo, optou pela designação criada pelo consumidor. Mudou de “Leite Condensado Marca Moça” para “Leite Condensado Moça”, depois para “Moça Leite Condensado”, foi assim que surgiu a marca Leite Moça que, hoje, é apenas “Moça”.




Significante e Significado

Essa dicotomia diz respeito ao signo, elemento constituinte das línguas, que apresenta duas faces em sua definição. Para Saussure o signo é a junção do significante com o significado, ou seja, é a união da imagem acústica com o conceito. As três características do signo linguístico são a arbitrariedade, a linearidade e a sistematicidade. A primeira se refere ao fato de que as escolhas dos significantes e significados de cada signo se dá por simples convenção social. A segunda se refere à distribuição espacial dos elementos que compõem o signo, onde esses elementos sempre aparecem um após o outro, como uma linha, ocupando lugares distintos. A troca de lugar de um elemento pode dar origem à outra unidade linguística, que é a terceira característica e que está relacionada à noção de valor citada anteriormente: um signo se define em relação aos outros, um é aquilo que o outro não é.

Sintagma e Paradigma

De acordo com Saussure, tudo o que acontece na realidade sincrônica da língua está relacionada a dois eixos: o eixo sintagmático e o associativo (paradigmático).

As relações sintagmáticas baseiam-se no caráter linear do signo linguístico, ou seja, é impossível que dois elementos sejam pronunciados ao mesmo tempo, pois a formação da língua se dá a partir de elementos que se sucedem um após o outro, sendo assim, o sintagma se compõe sempre de duas ou mais unidades consecutivas.

Por exemplo:

“ar” = dois fonemas;

“casa” = duas silabas;

“vamos jogar bola” = três léxicos;

Na cadeia sintagmática, cada elemento passa a ter valor de acordo com a relação que estabelece com o termo que lhe precede ou sucede, ou com ambos.

Dois exemplos: na palavra “flecha”, não se pode dizer as duas silabas ao mesmo tempo, nem se pode dizer “cha” depois de “fle”, pois “chafle” não faz sentido para os falantes.

É essa presença dos termos precedentes e subsequentes no discurso (ou plano sintagmático) que faz Saussure também chamar a relação sintagmática de “relação inpraesentia”.

Por outro lado, se dizemos “O boi comeu o pasto”, pensando em opor “comeu” a “come”, ou em trocar “pasto” por “capim” (o boi come capim), estabelecemos uma relação associativa ou in assentia (também chamada paradigmática), pois “come” e “capim” não está presente no discurso, relacionando-se a este apenas na mente do falante, através da associação dos tempos presentes aos termos ausentes que poderiam ser utilizados.

Como se pode ver, as unidades do paradigma se opõem. Se uma esta presente, as outras estão ausentes; uma exclui a outra.

Portanto, a relação entre os eixos sintagmático e paradigmático se dá da seguinte maneira: o sintagmático (horizontal) é o eixo das relações concretas, do discurso em si; o associativo (vertical) é o eixo das possibilidades, é o que fornece material linguístico que pode ser utilizado no discurso: é o suporte do primeiro eixo.


Texto por Camila Aparecida
Arte por Jéssica Oliveira

Arbitrariedade e Linearidade

- Corre, corre, ele está se aproximando! – Gritava Pedro.
Maria corria aflita quando tropeçou em uma pedra e caiu no chão úmido da floresta.
- Não! – bradou Pedro de uma distância segura.
Maria virou-se lentamente e viu aquela estranha criatura lhe encarando.
A criatura era alta com pernas extremamente longas e finas, seu tronco era pequeno como de um bebê, não tinha braços e tinha duas cabeças, uma com quatro olhos dois chifres e outra com três bocas e um enorme cabelo preto, porém o mais assustador era a quantidade enorme de dentes que ambas as cabeças tinham ao seu redor.  Maria ficou completamente paralisada. 
Alguns segundos depois Pedro ouviu um grito de pavor, e caiu no chão aos prantos. Ele sabia: Maria acabara de ser devorada. 


Ao ler essa história você possivelmente criou uma imagem em sua cabeça da estranha criatura narrada, e vivenciou cada segundo com Maria até o seu último suspiro, porém o mais impressionante é que mesmo a criatura sendo completamente irreal e, por que não, inexistente, você foi capaz de visualizá-la em sua mente.
Mas por que isso aconteceu? A explicação é simples: a língua não é um sistema de mostração de objetos, pois a linguagem humana pode falar de objetos presentes ou ausentes da situação de comunicação. Aliás, o objeto nem precisa existir para que falemos dele, pois a língua pode criar universos de coisas inexistentes. Para Saussure, o signo linguístico tem duas características principais: a arbitrariedade do signo e a linearidade do significante.

A arbitrariedade do signo:

Para Saussure o signo linguístico é arbitrário, portanto cultural. Arbitrário é o contrário de motivado, ou seja, não há nenhuma relação necessária entre o som e o sentido, não há nada no significante que lembre o significado.
Por exemplo, a palavra "mar" é "sea" em inglês e a palavra "cão" é "dog". Porém os sons de "mar" ou "sea" nada lembram o significado "massas de águas salgadas do globo terrestre", e o mesmo ocorre com os sons de "cão" e "dog", pois nada lembra "animal de quatro patas melhor amigo do homem".
Para Saussure, o "signo ser arbitrário não significa que o significado depende da livre escolha do falante" (1969:83), pois não está nas mãos do indivíduo a capacidade de mudar nada num signo linguístico, já que este é social. Imagine, por exemplo, um diálogo entre um casal de namorados:

- Amor, eu te amo, você é uma verdadeira cadela vagabunda para mim. 
- Como assim? – brada Maria
- Oras, uma cadela vagabunda daquelas bem grandes. – responde tranquilamente Pedro. 
- Isso é um absurdo, não sou cadela e muito menos vagabunda! – responde Maria furiosa.
- Ofensa? Por que ofensa? Eu estou elogiando você, quer dizer, para mim essas palavras tem o sentido exato de um lindo elogio.
- Elogio? Apenas no seu mundo isso é um elogio, pois para o resto da sociedade isso é uma verdadeira ofensa! – grita Maria enquanto esbofeteia Pedro. 
Pedro coloca a mão calmamente em seu rosto vermelho.
- O elogio é meu, portanto as palavras também são minhas. Cabe a você entende-las da mesma forma que eu. 


No exemplo o jovem apaixonado usa uma convenção própria da palavra "cadela" e "vagabunda" alegando ser um elogio para si, porém ao estabelecer sua própria convenção ele não permite a comunicação com Maria, que fica completamente ofendida com o elogio feito por seu namorado.
Portanto para Saussure, para que ocorra a comunicação é preciso que os falantes usem o mesmo consenso, caso contrário não seria possível nenhum tipo de comunicação.
Ainda no conceito de arbitrariedade, Saussure faz uma distinção entre o que é absolutamente arbitrário e relativamente arbitrário. Por exemplo, um signo como "mar" é absolutamente arbitrário, pois não existe nenhuma motivação no liame que una o significante e o significado. Já um signo como o dezenove lembra os dois signos que o compõe: dez e o nove.  Como a origem de dezenove é "dez + nove" e o significante é composto dos signos dez e nove, ele é relativamente motivado. Por outro lado, os signos dez e nove são absolutamente arbitrários.

Vale mencionar que a arbitrariedade do signo não se aplica a todas as linguagens, pois há linguagens como as visuais, por exemplo, que têm signos em que a relação entre significante e significado é motivada. Nos símbolos, a relação entre o significado e o significante pode ser motivada. Citamos como exemplo a Deusa da Justiça Themis, uma mulher com os olhos vendados e com uma balança nas mãos, onde a vedação nos olhos representa a imparcialidade do juiz (ou da própria Justiça) ao julgar um processo e a balança que representa a equanimidade, ou seja, a não diferenciação entre as partes processuais.

Por fim, é na poesia que a motivação do signo aparece com toda a sua força, pois o poeta busca motivar a relação entre o significante e o significado.

A linearidade do significante

Para finalizar trataremos da linearidade do significante. A linearidade é uma característica das línguas naturais, segundo a qual os signos, uma vez produzidos, dispõem-se uns depois dos outros numa sucessão temporal ou espacial, por causa dessa característica não se pode produzir mais de um elemento linguístico de cada vez; um som vem depois de outro, uma palavra depois da outra, e não se podem produzir dois sons ao mesmo tempo ou duas palavras ao mesmo tempo.

Porém existem linguagens cujos significantes não são lineares e, portanto se apresentam simultaneamente como, por exemplo, uma pintura.


Bibliografia:
FIORIN, JOSÉ LUIZ. Introdução à linguística I - Objetos teóricos. Editora Contexto, vol. 1 – São Paulo, 2006.

Texto por Iole Pontes
Arte por Jéssica Lima

Variação Linguística

No estudo da língua é possível encontrarmos pontos de vista distintos sobre a presença da variação linguística, que se dividem entre os estudiosos que vêem a linguagem como um sistema homogêneo e os sociolinguistas (ou variacionistas), que a observam como um sistema inerentemente variável. É deste último ponto de vista que iremos tratar nesta postagem.

Segundo o estudo sociolinguista uma mesma língua pode variar de acordo com a localização geográfica (variação diatópica) e aspectos sociais (variação diafásica). Esses variantes podem ser lexicais, fonéticos, morfológicos e sintáticos. Além disso, de um modo mais abrangente, o fato de termos inúmeras línguas já caracteriza a heterogeneidade da linguagem humana. Porém iremos focar somente no português brasileiro, e vamos começar explicando sobre as variantes da língua:

Variantes Lexicais

Há léxicos, ou vocabulários, que são de uso mais comum em cada região do país. Apesar de existirem diversos léxicos referindo-se a uma mesma coisa no país todo, alguém que ouve um vocábulo desconhecido não o identifica como um idioma diferente, pois reconhece os fonemas e o padrão silábico do português brasileiro nele, mesmo não entendendo, de início, seu significado.


"Bá, me vê dez cacetinhos, por favor, tchê!"

No Rio Grande do Sul o pão francês, mais conhecido como somente pão ou até mesmo pãozinho, no diminutivo, na maioria do Brasil, é referido como cacetinho.

Variantes Fonéticas

Outra variação que podemos encontrar é a da pronúncia. Uma mesma palavra pode ser pronunciada de maneiras diferentes dependendo da região ou da situação comunicativa da qual o falante se encontra, e as variações podem ser inúmeras.


"Ixquesi o ixqueiro na ixcola e fui buxcar de ixqueite"

"Esqueci o isqueiro na escola e fui buscar de skate." É comum na fala regional do Rio de Janeiro a palatalização no som /s/, ou seja, uma articulação bucal diferente ao pronunciar o fonema, fazendo com que, no caso, o som de /s/ soe chiado como o som de /x/.

Variantes Morfológicas

Essa variação acontece quando o falante apaga ou altera algum morfema da palavra ao falar e, diferentemente das outras variações, não é essencialmente diatópica, mas sim diafásica e frequentemente individual. Um mesmo falante pode falar "andar" e "andá" dependendo se a situação comunicativa é mais formal ou informal, respectivamente.


"Adoro andar na praia!" / "Adoro andá na praia!"

Variantes Sintáticas

A variação sintática ocorre no nível da sentença, onde existem mais de uma maneira de construir uma mesma frase sem mudar o seu sentido.


"Este é o gato cujo eu adotei há um mês"
"Esse é o gato que eu adotei mês passado."

As variações sintáticas também são diafásicas e individuais, variando de acordo com o grau de formalidade da situação comunicativa. O primeiro exemplo é mais formal, e seria estranho adotar tal construção sintática numa roda de conversa entre amigos. Esses dois exemplos não são as únicas construções existentes para essa frase: é possível dizer a mesma coisa usando diversos modos.

Comunidade de Fala

Uma língua é caracterizada por um conjunto de regras, e quando um certo grupo utiliza certas variantes dessa língua, denomina-se Comunidade de Fala. Apesar da fala ser individual, ou seja, cada pessoa falar de um modo único e pessoal, ela ainda segue a mesma gramática (conjunto de regras linguísticas) de seu grupo de fala.

Cada agrupamento de falantes possui características linguísticas comuns, e como comunicam-se mais entre si do que com outros grupos há a manutenção dessas regras, o que também leva a um distanciamento entre os grupos, já que como raramente se relacionam não há a troca de características. A atitude diante do uso da linguagem também muda entre os grupos; cada grupo tem uma atitude sobre o que fala e sobre o que os outros falam, e escolhe o que seria o melhor. Essas atitudes estão delimitadas não somente por fronteiras geográficas, mas também por fronteiras sociais e, às vezes, podem até mesmo marcar algum tipo de preconceito linguístico.


"Biscoito!"
"Bolacha!"

O estudo da variação linguística

Para realizar os estudos de variação linguística os sociolinguistas primeiramente coletam um conjunto de dados, denominado corpus, através de gravações e transcrições ou os obtendo em algum banco de dados específico, como o Projeto NURC (Norma Urbana Culta). Após isso são realizadas análises qualitativas desses dados, observando as variantes e levantando hipóteses as relacionando à fatores sociais e linguísticos. Por fim esses dados são transformados em dados quantitativos e estatísticos através de um programa de computador chamado VARBRUL. Ainda há inúmeras pesquisas a serem realizadas no campo da variação linguística, relacionando o uso das variantes à fatores extralinguísticos como idade, escolaridade e nível econômico para que possamos entender como essas diferenças sociais influenciam na formação de comunidades de fala e como essas comunidades influenciam na evolução da língua ao passar dos anos.

Bibliografia:
FIORIN, JOSÉ LUIZ. Introdução à linguística I - Objetos teóricos. Editora Contexto, vol. 1 – São Paulo, 2006.

Texto e arte por Jéssica Lima

Preconceito linguístico

Desde o fim do século XIX a linguística estuda a língua em seu uso real, considerando variações linguísticas, sejam elas de espaço ou tempo. Por essa razão, a linguística trabalha com a noção de adequado e inadequado em um contexto comunicativo, refutando assim a ideia de “erro”. Em despeito a mais de um século de estudo sobre a ciência da língua, as escolas simplesmente ignoram quase que totalmente os avanços da linguística e ensinam que há somente uma forma correta de falar e escrever, afirmando que apenas quem segue as regras da norma culta fala o idioma corretamente. Tal postura das escolas aliada à mídia (novelas, por exemplo, nas quais personagens nordestinos são geralmente retratadas como pessoas inferiores e utilizadas para provocar risos, e reportagens, manuais e telecursos com a finalidade de “ensinar a falar corretamente”) intensificam um preconceito não tão discutido quanto o racial ou o de gênero, mas nem por isso menos presente, que é o preconceito linguístico.

É necessário apenas alguns cliques para encontrar exemplos desse preconceito em prática, e citaremos dois deles. No artigo de opinião escrito por José Sarney para a Folha de São Paulo em maio de 2011, com o título “Fale errado, está certo”, o autor afirma que há uma tentativa de criminalizar quem fala certo e que a escrita é a linguagem falada em caracteres. Além disso, ironiza ao dizer que voltaremos ao sistema tribal, no qual cada um fala como quer.  No site Viva Itabira temos o artigo “É certo falar errado?” escrito por Ana Maria, que além de utilizar expressões como “ofensivas variações” e “língua descaradamente inculta”, demonstra todo o seu preconceito linguístico no trecho: "Mineiros novos ricos adoram falar ‘ocê’, dá um ar de que enriqueceram, mas continuam sendo gente simples da roça, também perguntam se você ‘tá bão’". Para finalizar o texto utiliza a seguinte frase: “Vocês nem imaginam a dificuldade para escrever este artigo, o computador ainda mantém um mínimo de dignidade e se revolta com ataques frontais à língua portuguesa”.

Nenhum desses dois autores é um especialista da área em questão e provavelmente não conhecem os princípios da linguística. Não há criminalização a quem fala “corretamente”, como diz José Sarney. Aliás, não há o “correto” e “incorreto, e sim “adequado” e “inadequado”, que considera além das escolhas do léxico e sintaxe utilizados, o contexto. Também se sobre o que, como ele mesmo diz, os “novos teóricos da educação” acreditam que deve ser ensinado nas escolas; nenhum linguista afirma que não se deve ensinar as regras da gramática normativa, mas sim que não se deve aceita-la como única possível e rejeitar as demais variações. Erra também ao dizer que a língua escrita é a simples representação da língua falada, sem considerar as características próprias de cada uma. Outro equívoco é dizer que cada um falará como bem entende, pois em qualquer variação há estruturas que não podem ser ignoradas, ou não terão sentido. Por exemplo, posso dizer “os livro tá na mesa”, fugindo à norma culta por utilizar o plural somente no artigo e reduzindo o verbo “está” para “tá”, mas mesmo assim sendo compreendida por outro falante da mesma língua, porém não poderia dizer “tá livro os mesa na”, pois essa estrutura não pertence à nossa língua e não seria passível de compreensão. O mesmo ocorre com palavras, não é possível que um falante crie suas próprias palavras como bem entende, pois não será compreendido por outras pessoas. No texto de Ana Maria o que mais chama a atenção é o fato de a autora pensar que ao ascender socialmente o individuo passa a dominar a norma padrão que não possuíam quando era “gente simples da roça”, porém prefere continuar com sua variação anterior porque acha “chique”. Até o computador dela é mais digno que brasileiros que não utilizam a norma padrão e por isso cometem “ataques frontais à língua portuguesa”.
Nos dois textos podemos identificar claramente que o preconceito linguístico está intimamente ligado ao preconceito social; as classes mais prestigiadas são as que fazem maior uso da norma aceita como única correta, e citando novamente José Sarney, as demais não fazem parte do português, como afirma quando diz "sem regras, ela se torna outra língua, passando por crioulo, dialeto ou outra coisa que se queira chamar."

Mesmo com os avanços da linguística, mitos como “o brasileiro não sabe falar português” continuam a ser espalhados e aceitos em nossa sociedade. A quem interessa manter calados os linguistas e os vários brasileiros oprimidos por “falarem tudo errado”? Por que leigos em línguas continuam a opinar em como deve ser o ensino do idioma materno sem considerar todo o estudo feito por especialistas? Ainda há muita resistência ao estudo da linguística em sala de aulas, embora tenha ocorrido um progresso nesse sentido nos últimos anos ainda não é o suficiente. O preconceito linguístico existe e atua fortemente em nossa sociedade, e assim como os outros, deve ser amplamente discutido e combatido.


Bibliografia:
BAGNO, MARCOS. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. Editora Loyola, 2008.
Revista Galileu: O preconceito linguístico deveria ser crime

Texto por Vanessa Passos
Arte por Jéssica Lima